Autonomia universitária

Correio Braziliense, 15/06/07

Timothy Mulholland

Reitor da Universidade de Brasília

A ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo (USP) por seus estudantes trouxe novamente, e de forma aguda, a autonomia universitária ao debate público. O conceito nasceu do princípio da liberdade de cátedra, conquistada a duras penas ao longo da existência secular da universidade no ocidente. Estudantes e professores reivindicavam o direito de pensar, manifestar-se e ensinar sem o controle externo da igreja, do Estado ou da administração. Essa reivindicação ainda é relevante hoje, pois há universidades que continuam sob o jugo dessas esferas no século 21.

Nos países democráticos, a liberdade de cátedra vem sendo consolidada desde o século 19, especialmente em instituições públicas. Esse processo contribuiu para viabilizar o período de maior desenvolvimento científico, tecnológico, social e econômico que o mundo já viu. Onde essa liberdade não prevaleceu, o obscurantismo garantiu o atraso. A liberdade de cátedra só é assegurada, no entanto, se também o forem os meios para seu pleno exercício.

Pouco adianta a criatividade e a inovação na esfera das idéias se não houver apoio para seu desenvolvimento e concretização — a interlocução e o debate entre pares; a disseminação de idéias; a infra-estrutura de pesquisa — enfim, universidades. Os países mais prestigiados por sua criatividade intelectual são os que implantaram e mantiveram sistemas universitários amplos e bem-estruturados, cuja alma foi e é o apoio intransigente à liberdade de pensamento e de criação.

A história recente da universidade pública brasileira mostra contradições. A Constituição assegura plena autonomia a elas, mas a prática, nem sempre. Se, por um lado, não há controle ou censura quanto às idéias, há freqüentes empecilhos ao exercício da liberdade de cátedra, com prejuízo para a sociedade.

O impasse na USP girava, exatamente, em torno da autonomia universitária. Logo após a promulgação da atual Constituição, decreto do então governador Orestes Quércia estabeleceu repasse mensal para as universidades paulistas, baseado numa fração do ICMS estadual. O uso desses recursos passou a ser de competência de cada instituição, que prestaria contas ao respectivo Tribunal de Contas. Com um decreto, implementou-se a autonomia prevista na Lei Maior.

Os resultados positivos para as instituições paulistas, e para a sociedade, foram enormes. Elas ganharam eficiência, expandiram, aumentaram a produtividade. Essa autonomia, porém, foi de encontro à filosofia dominante na administração pública brasileira desde os anos 1990: a de que deve haver controle central, tim-tim por tim-tim, de cada ação e de cada centavo — antes, durante e depois. Foi essa sistemática absolutamente burocrática que baixou sobre as universidades federais, sufocando a administração, o ensino, a pesquisa e a extensão em infindáveis camadas de papel. Hoje, começa a brilhar uma pequena luz, graças à compreensão do MEC.

As mudanças recentemente introduzidas pelo governo paulista tenderam na direção do que se implantou em Brasília. A exigência de autorização prévia para medidas administrativas está no coração da questão porque isso implica demora e, pior, a possibilidade de interferência e mesmo de inviabilizar a aplicação de recursos para os fins necessários. O planejamento é transferido para outra esfera, a autonomia acaba e os resultados diminuem.

As autoridades eleitas para gerir o Estado não têm de violar a Constituição para exercer seu papel. Tudo o que a universidade faz pode e deve ser objeto de avaliação — quer pelo cumprimento das leis, quer pela qualidade e alcance de sua atuação — depois do fato. Há instrumentos para isso. Impor restrições às instituições, além de inconstitucional, provoca perda de resultados relevantes. Menor competitividade científica significa maior atraso para o país.

Ademais, é possível oferecer incentivos a ações estratégicas, como é feito pelo MCT na pesquisa e pelo MEC na expansão das universidades federais. O impacto é imediato e visível; as instituições respondem aos desafios com competência e altivez.

A USP representa exemplarmente o esforço brasileiro para alcançar alto nível de desenvolvimento científico-tecnológico e excelência na educação superior. É um patrimônio de São Paulo precioso para o Brasil. A universidade brasileira e nossa comunidade científica aguardam solução que assegure a autonomia universitária paulista e sua manutenção como modelo para as demais instituições que atuam em busca do futuro que o Brasil almeja.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *