Estratégia educacional brasileira

Folha de São Paulo, Opinião, 09 de janeiro de 2008

RUDÁ RICCI

Assim, parece ser a hora de repensarmos toda a porta de saída do ensino regular e o ingresso no mundo do trabalho

Com a criação da USP, em 1934, nascia um pensamento científico com vocação ao poder político. Essa vocação do mundo universitário cresceu, atingiu cargos de elaboração governamental, gerou referências para a esquerda. Mas, nos anos 90, houve uma acelerada e radical inversão da realidade universitária.

Ao redor de 80% das vagas se concentraram em faculdades particulares, dado o ´boom´ de abertura de universidades privadas no interior do país. Houve avanços: as vagas noturnas das particulares interiorizaram o estudo universitário e abriram oportunidades a mulheres e trabalhadores. Mas o crescimento foi desordenado e provocou a queda da qualidade.
A ´Geografia da Educação´ (MEC) revelou que as faculdades particulares do país possuem o dobro de alunos por sala que as públicas, menos doutores e um ínfimo número de docentes com dedicação exclusiva. Há uma impressão generalizada de que houve muita ingerência política na abertura de cursos.

Marilena Chaui, num dos encontros da Anped (maior encontro nacional de educação), lamentava a transformação da universidade brasileira de instituição em organização. Explicava que uma instituição se volta para a sociedade, e a organização, para si mesma, voltada para sua sobrevivência e seu crescimento.

Agora, ficamos sabendo pelo censo da educação superior que o número de formados em universidades públicas caiu 9,5% nos últimos dois anos. O problema é mais grave na medida em que se sabe que as faculdades do interior brasileiro enfrentam grandes dificuldades desde 2005.

A inadimplência chega à média de 40% (caso de São Paulo, Estado mais rico do país). A concorrência entre pequenas faculdades chega às raias do desespero. O ataque ao ensino médio é cada vez maior e, muitas vezes, obriga uma faculdade a se conveniar com uma rede de ensino médio para obter a fidelização do futuro universitário.

Caem as matrículas no ensino médio (1,5% entre 2004 e 2005 e 1,4% entre 2005 e 2006) e aumenta a procura pela modalidade EJA-médio (educação de jovens e adultos-ensino médio) em 10% entre 2005 e 2006, motivada pela oferta de postos de trabalho. Projeta-se para 2008 a criação de 2,5 milhões de novos empregos.

Assim, parece ser a hora de repensarmos toda a porta de saída do ensino regular e o ingresso no mundo do trabalho. O Brasil possui uma cultura de valorização do título universitário para ingresso e evolução no mercado de trabalho. Mas a proliferação de vagas nas faculdades particulares banalizou o ensino acadêmico.

É de questionar, portanto, os motivos para não transformarmos o ensino médio e a EJA em modalidades próprias, e não ´ritos de passagem´.

No caso do ensino médio regular, trata-se de passagem para o mundo universitário. No caso da EJA, de certificação para postos de trabalho, normalmente semiqualificados.
Qual seria o motivo para não transformar, como ocorre na Europa (sul da Alemanha, em especial), o ensino médio e a EJA em modalidades específicas, de alto padrão de qualidade, para formação de quadros técnicos totalmente direcionados para a vocação regional do mercado de trabalho?

Haverá, possivelmente, nos próximos anos, um movimento de oligopolização do ensino universitário privado do país. Em alguns casos, grupos econômicos mais agressivos e com menor vocação educacional avançarão o sinal para fazer um bom negócio a partir da crise cada vez mais profunda de pequenas instituições acadêmicas. A luta pela sobrevivência será mais aguda e é necessário redirecioná-la para que não se torne selvagem.

Um acordo nacional estratégico da educação brasileira precisa ser firmado para definir as identidades de cada segmento do ensino brasileiro, sua vocação e seu foco de atuação, assim como os vasos comunicantes entre eles, por meio de programas de extensão definidos não como marketing institucional, mas como projeto de desenvolvimento do país.

Afinal, continuaremos com os velhos rituais de passagem, que limitam o ensino médio e a EJA às técnicas de memorização de fatos e informações a serem descarregados nos exames de seleção à universidade ou reproduzidos em atividades repetitivas de postos de trabalho constantemente ameaçados pelas novas tecnologias ou subemprego?

Um dia, Florestan Fernandes perguntou-se a respeito do objetivo do ensino universitário, seu papel social para o país. O mundo acadêmico se limitou a tal ponto que não temos mais nenhum acadêmico que se faça a mesma pergunta.

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RUDÁ RICCI, 45, sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em ciências sociais, é membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. É autor, entre outras obras, de ´Terra de Ninguém´.

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