A ‘disfuncionalidade’ da universidade pública

Folha de São Paulo, 13/07/07

RENATO DAGNINO

A universidade periférica não serve nem à elite econômica e política, nem ao que se vem chamando de movimentos sociais

O ENFRENTAMENTO a que estamos assistindo, ao não explicitar a razão da escassa vontade dos governantes (e, em certa medida, da sociedade) de manter o modelo de universidade pública vigente, não levará à superação da sua crise crônica. Essa razão é sua crescente ‘disfuncionalidade’. Isto é, o fato de que ela, por ser parte de um sistema socioeconômico marcado pela nossa condição periférica e em processo contínuo de auto-organização, cada vez menos atende aos interesses dos dois segmentos contraditórios que conformam esse sistema. Exagerando: a universidade periférica não serve nem à elite econômica e política, que a ocupa e controla, nem ao que se vem chamando de movimentos sociais, que nela não podem entrar. Radicalizando ainda mais, para que não caiba dúvida: nem à classe dominante (o que se alude como ‘capital’), nem à classe dominada (o que se denomina ‘trabalho’).

Os atores que se enfrentam -as lideranças docentes e discentes e os que elas denominam governantes obscurantistas e autoritários- pertencem, se me permitem generalizar, ao primeiro segmento: elite. Eles se opõem em muitas coisas, mas ambos discordariam do diagnóstico da ‘disfuncionalidade’. Garantem que a universidade é imprescindível para atender as demandas cognitivas dos projetos políticos dos dois segmentos antagônicos da nossa sociedade. Para explicitar os seus interesses em relação à universidade, mostrarei como esses segmentos dela participam. E, mais importante, o que dela demandariam em termos cognitivos para viabilizar seus projetos econômico-produtivos coletivos.

Primeiro, o lado das elites. Seus membros são maioria na universidade; têm imprimido sem questionamento sua marca e têm sabido beneficiar-se do status social conferido pelo diploma e pelas habilidades profissionais que satisfazem seus interesses. A viabilização do seu projeto chegou a demandar algum conhecimento produzido na universidade. Ele os ajudou, enquanto proprietários dos meios de produção, a acumular capital no âmbito dos modelos econômicos primário-exportador e de substituição de importações. E, enquanto governantes, a se legitimar por meio do projeto ‘Brasil grande potência’.

Para mostrar a ‘disfuncionalidade’, que se traduz no fato de as empresas hoje pouco demandarem conhecimento localmente produzido (incorporado em pessoas ou desincorporado), aponto dois indicadores: a) quase 70% da escassa minoria dita inovadora declara que a compra de bens de capital é sua principal estratégia de inovação, enquanto 16% apontam a realização de P&D; b) enquanto 70% dos mestres e doutores norte-americanos que se formam em ciências ‘duras’ e engenharias vão fazer pesquisa na empresa privada, no Brasil, os 30 mil que se formarão no ano próximo, se quiserem fazer o mesmo, terão que disputar as 300 vagas que, num cenário róseo, se abrirão caso o estoque de 3.000 que lá trabalham cresça uns inesperados 10%.

O fato de que a capacidade de acumulação da empresa prescinde atualmente das universidades (e dos institutos de pesquisa públicos) evidencia o lado empresarial da ‘disfuncionalidade’. Sobra para as elites só o status, decrescente, que ela proporciona. Por trás do enfrentamento explícito, há um outro, surdo, mas decisivo para evitar essa ‘disfuncionalidade’. Nele, os tradicionais partidários da idéia ingênua de oferecer conhecimento de qualidade à sociedade encararam os pró-mercado, os partidários do empreendedorismo. Conscientes da ‘disfuncionalidade’ empresarial, estes têm se lançado na defesa do que alegam ser a demanda da empresa, logrando a privatização branca do espaço público em seu benefício. Apesar de diferentes, os interesses são negociáveis e tendem a conformar um modelo que se contrapõe ao que atende aos movimentos sociais.

Sobre a ‘disfuncionalidade’ do lado da classe dominada, é redundante comentar as barreiras ao seu acesso à universidade pública. Para evidenciar que a viabilização do projeto político dos movimentos sociais está dela dissociado, aponto dois indicadores: a) mais de 50% da PEA, sabidamente os mais pobres, está fora do mercado formal, aquele a que poderia aceder por sua passagem pela universidade, se não estivéssemos numa ‘economia que cresce sem empregar’; b) a universidade acompanha uma tendência mundial em que 70% do gasto em pesquisa é privado (deste, 70% é realizado por multinacionais), o que torna o conhecimento que produz ‘disfuncional’ para a demanda cognitiva das redes de economia solidária que aparecem como única alternativa visível de geração de trabalho e renda.
Colocar o interesse dos movimentos sociais na agenda do enfrentamento surdo é uma tarefa urgente da comunidade de pesquisa de esquerda. Essa parece ser o único modo de explicitá-lo e impedir que a universidade se torne ainda mais ‘disfuncional’.

RENATO DAGNINO, 58, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e um dos fundadores do Departamento de Política Científica e Tecnológica daquela universidade

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